A Expedição desta vez foi ao trecho do consagrado trekking chamado Volta da Juatinga, no litoral de Paraty, na região costaverdeana fluminense. Nesse caso, Martins de Sá x Cairuçu das Pedras.
1- OS INÍCIOS
O termo do léxico Tupi aportuguesado do substantivo próprio Cairuçu, tem polêmica na mídia virtual, mas conforme nossos estudos inéditos e pioneiros:
Caa- iriri-ussu:
Caa:mato;cerca de troncos + iriri: ostras + ussu/uçu: grande.
Seria então Cairuçu:
cercado grande de ostras,
o que caracteriza realmente o ambiente geológico,que exige grande desenvoltura dos navegantes para aportar na praia.
Ou a presença de muito vegetal chamado arranha-gato, que tem espinhos e corta como ostra.
Nesse caso:
Mato grande de(como)ostras
Os topônimos são um dos valores constitutivos da identidade de um grupo.
Já o armeiro e aventureiro alemão Hans Staden, que esteve por quase 1 ano entre os Tupinambás em 1554, diz que estava ao sopé de uma grande montanha: Ocarassu/Ocarasu.
Aí , já muda a interpretação, mas temos de ter o cuidado pois ele registrou o que o ouvido dele captou, na sua particularidade de um estrangeiro.
Ocara: espaço entre várias casas; praça, pátio. + Ussu: grande
Logo:
Praça grande
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"Ocarasu" no canto esquerdo inferior da gravura. |
Com os acertos feitos durante 30 dias de antecedência, com meus contatos nativos, nossa viagem começou com a nossa acolhida do amigo querido e colega profissional offshore Rodrigo Pereira Santos na sexta-feira com um jantar praiano em casa em Angra dos Reis. E no sábado de manhã um desjejum cotidiano para nós , Maria, Agnes e eu, mas conforme o outro amigo de trilhas, Gil Fonseca:"um café de hotel". No meu lar todos são reis e rainhas. A vista das montanhas da Serra Mar da minha casa prenunciava um belo dia ensolarado outonal.
Na ida a Paraty, antes de Tarituba, no Km 540 da BR101 visitamos o resiliente Monumento do Cristo de Lata, recentemente limpo por um grupo voluntário de bikers de Angra, e que tem uma vista lindíssima...
Nos anos 1970, tinha churrasqueiras públicas, banquinhos, visão do mar. Era o conceito de "Belvedere", de rodovia turística!
Infelizmente esquecido pelos moradores e abandonado pelo DNIT há 50 anos...mas está lá: firme.
Partimos para Paraty Mirim pela BR101, que é um bairro de Paraty.
Lá o Cláudio Sheriff , nosso barqueiro já estava a postos. A travessia marítima até a praia de Martin de Sá foi tranquila, mas teve uma maresia com vagas de 1,5m a 2m na passagem da Ponta da Juatinga devido a um ciclone passado .
Em Martin de Sá (-23.303064,-44.553421) nosso já conhecido guia Tião (acesse Expedição Juatinga ), já estava esperando...e partimos pela trilha da parte costeira, que segundo ele é mais bonita, pois tem uma outra "de cima". |
Lagosta do rio |
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Maré mansa |
2- A TRILHA E OS CAUSOS
No trajeto espetacular, além obviamente das espécies de bromeliaceae, araceae (como o Epipremnum pinatum), flores como a perfumada Macela (Achyrocline satureioides ), insetos multicoloridos, riachos e grutas , tem diversos mirantes naturais com vistas panorâmicas que mostram o traçado sinuoso da costa .
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Nosso guia Tião |
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Flora ,minimundo |
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jibóia |
O Tião com seu modo caiçara alegre, vai contando os causos como o da Onça e a Araponga, onde as duas comadres estavam disputando quem cantava mais alto...a onça mugiu: mato balançou, pássaros voaram, teve até arbusto que caiu... aí, a araponga, que naturalmente faz um som de gargarejo tipo reco-reco antes de cantar, acabou adormecendo a onça; foi quando então a araponga se preparou e deu um bom cantado, alto, então a onça se assustou do sono, aí a araponga disse:"está vendo, tenho a voz mais poderosa".
São panorâmicas e quadros a cada curva do caminho e lugares sombreados com riachos entre formações de granito e gnaisse que formam um conjunto bonito.
Chegamos na comunidade caiçara do Saco das Enchovas (-23.313317,-44.563143) onde moram apenas 2 famílias.
Ali usamos o wi-fi para mandar a última mensagem de whatsapp para a família/amigos...um local de costeira de mar azul com estivas para botes e um vilarejo minúsculo de silêncio e tranquilidade.
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energia solar |
Após as casas, continuando a bela trilha, há no morro um visual grandioso!
3- O 1° DIA: CULTURA CAIÇARA
Chegamos no objetivo (-23.323137,-44.566338): Cairuçu das Pedras! A trilha final é dentro de uma cascata com pedras e um portal natural , onde a água desce debaixo das rochas e caem direto numa piscina construída artificialmente e que , já na praia, faz conjunto harmonioso com o azul marinho de suas águas doces com o anil mais claro do mar. Já queríamos nos jogar ali mesmo naquele cenário de pedras, ondas espumando, sol, areia colorida e áspera...
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O portal de chegada do Cairuçu |
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Piscina azul: cartão postal |
Fomos direto a casa do casal Josias e Joana, onde tratamos as refeições e depois fomos nos acomodar na casa do Elizeu, previamente reservada. Almoçamos um delicioso feijão carioca no fogão a lenha, arroz e peixe frito. Ali nos apresentamos e fomos interagindo com o casal sobre nossas origens étnicas, as dificuldades de morar num local remoto , as vantagens e esperanças...essas conversas ricas discorreram durante todas as refeições ali, num ambiente de paredes de taipa e a brasa sempre fumegante no fogãozinho de chão ao lado...
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Após o almoço, já na casa alugada, o deslumbre se abre com a porta aberta para um oceano dourado e brilhante! Ao invés de descermos a praia, fomos então fazer uma sondagem antropológica no sítio do Sr. Aprígio e do Sr. Jovino Roque Firmino ou Jovino dos Remédios, (como ele se autodenomina), anciões da vila e lideranças naturais do povoado; também subimos a Pedra do Aprígio, de onde se avista desse a Ilha de Jorge Grego na Ilha Grande até a Ponta da Juatinga, onde fica o Farol.
O Sr. Aprígio não estava e qual nossa mais gostosa experiência na Casa de Farinha do Sr. Jovino, onde ele explicou as ancestrais técnicas da cestaria da Taquaruçu (Gradua tagoara) e o cipópeva. Ali, do alto dos seus 77 anos, com muita energia, foi mostrando o fuso, a prensa de tapiti e o forneio da massa de mandioca Maricá (veja Sambatti, Juliano, 1998, pág. 87).
Além disso, demonstrou de forma didática a montagem de um cesto de 48 fitas/lâminas de taquara, e o mister de artesão , um dia últimos caiçaras, com os segredos dos 6 palmos (média de 14 cm cada) de gomos do bambu; ainda a firma de banhar na água para hidratar as fitas, se o trabalho durar dias. A fórmula geométrica de sobrepor as lâminas tem características distintas no bojo, no fundo, dos quatro pés do fundo e para amarrar a boca, são feitas tranças "como de cabelo de mulher" ( sic) das extremidades que sobram de cada lâmina vegetal.
A conversa também foi cheia de causos e ditos de sabedoria. Teve a ocasião em que um turista mochileiro, caído na trilha Cairuçu x Ponta Negra, semi desmaiado...suando...recebeu uma oferta, espantado, do Seu Jovino com uma pedra-ferro enorme nos braços pois estava fazendo uma obra, já idoso... exclamou:
_"O Sr. quer uma ajuda, eu carrego sua mochila".
Já outras vezes , em seu sítio, onde passa a trilha da Volta da Juatinga, salvou da fome, sede e até ajudou no resgate de passeantes/turistas que se perderam na mata.
Respeitar a sobrevivência, o cultivo familiar, chamado etnoalimentos, o direito a construção de canoas de um pau só, é o mínimo.
Mas não é só de estórias e sorrisos que esses homens de fé e cultura vivem... há as pressões que funcionários públicos de órgãos estatais fazem, proibindo ilegalmente os modos de vida típicos (Acesse e conheça os direitos dos Povos Tradicionais ), acusando esses mestres canoeiros , artesãos e conhecedores dos mistérios da lavoura e da floresta, de destruírem a biota. Enquanto mansões e píer monstruosos sobre o mar e a mata nativa, crescem em áreas protegidas e mediante estranhas negociações são deixadas em paz.
Como ele mesmo sapienciou:
"Por que esses fiscais não perturbam e multam o vento, que derruba milhares de árvores por ano? Nós só precisamos de uma, as vezes por anos, para fazer a canoa. Sabe o porquê: é porque o vento é mais forte que eles; a natureza, criação de Deus, é mais forte. Eles sabem disso. "
Mas o patrimônio etnocultural tem nuances muito mais emocionantes nessas audições.
É minha opinião que o método arquitetônico tradicional de taipa de mão não é estanque e nem impede a modernização das moradias.Uma solução para manter o bucolismo turístico e conciliar com um desejo legítimo dos caiçaras de evolução, é permitir a construção de paredes comuns de cimento, tijolo cerâmico e revestimentos diversos de azulejos e pisos por dentro, porém refazendo a parede de taipa e trançado, por fora.
Sua simpatia, vitalidade, inteligência, traz um sentimento de ancestralidade. É um privilégio estar presente num momento desses!
Terminamos o dia jantando um delicioso cação cozido no Josias...a noite foi serena, ao som das ondas.
4- O ALVORECER DO SÁBADO MÁGICO
Já no sábado, acordamos madrugadinha e fomos até o mirante da Pedra.
Ali, ao som de Clara Nunes cantando "o mar serenou" e Ennio Morricone em "Gabriel,s oboé", a aurora foi surgindo...em tons de laranja e acobreado o mar no horizonte, as montanhas e o céu foram criando uma verdadeira pintura mega. Momento pessoal mas também de amizade, com os companheiros de aventura Gil Fonseca e Rodrigo P. Santos.
Fomos a praia , tomamos banho nas águas da piscina de águas naturais e aproveitamos a beleza cênica.
Já antes do almoço, a conversa foi com o Sr. Aprígio, morador e liderança sempre sorridente, com seu cigarrinho de palha e com memória viva.
Entre os episódios da atualidade (raros) que assustam o pacato vilarejo, como ocasiões de pirataria marítima (botes que assaltaram comunidades vizinhas) e até de tiroteios provocados por pessoas que passam por trilhas .
Também há situações de conflitos territoriais/familiares de certa forma cômicos, como é um caso de um pastor neopentecostal que jurou na inauguração nunca deixar no restaurante ou na praia, mulheres de fio dental e seminuas ou homens de sunga ...mas que ao começar a lucrar , agora os recebe com toda alegria.
Uma das frases do Sr. Aprígio que mais me marcaram foi:
"Aqui trabalho é trabalho , mas descanso é descanso"
Um conceito simples, mas nessas quase 72h sem o terabytes, megapixels e notícias negativas que ficamos ali...nos desintoxicando...entendemos perfeitamente!
A já citada simpática famíia do Josias e da Joana, nos presenteou nesse último dia com um banquete de lula dorê, uma farinha de manema deliciosa e de surpresa, um estrogonofe de lula.
O cafezinho e aprender a tecer a rede de cerco ficou pra outro dia.
5- UM ATÉ LOGO
E assim...
Fomos nos despedindo devagar daquele recanto...
Dei um aceno da praia para alguns moradores, agora amigos, que estavam no alto do morro...
Enquanto o bote do Sheriff se afastava...fazendo manobras cheias de experiência no leme entre as rochas e ostras do inesquecível Cairuçu das Pedras e seu povo.
Cairuçu dos fortes...
Cairuçu das lendas....