Estive no Rio no dia 20/11, dia da Consciência Negra, no Brasil; para um compromisso museológico e passei apenas 26 horas lá.
Nessas horas de convívio, fiz questão de ir ao evento, de trem e metrô na Zona Norte e andar por quase 9 km na área de Copacabana, Ipanema e Lagoa. Numa metrópole internacional como o Rio de Janeiro, ainda persistem práticas do século XVII:caos urbano, inércia do estatal político, insistência de repetição de contravenções individuais e crimes graves a luz do dia.
Após centenas de Governadores-Gerais (das Capitanias do século XVI -XVIII), dezenas de prefeitos no século XX e tantos milhares de deputados e vereadores por séculos, umas poucas horas entre a Zona Norte e a Zona Sul, demonstram uma cultura já fincada: preto e pobre pode tudo, mas no lugar reservado pra ele.
🖤1° experiência: a Central (dos problemas) do Brasil.
Ao sair do moderno VLT, saí na estação lateral da histórica Central do Brasil , e o primeiro impacto foi a decadência urbana da região, entorno com calçadas quebradas e mato, e...os constantes companheiros do viajante carioca: muitas barracas improvisadas de .
Já lá dentro, esperando meu amigo , assisti uma briga de toxicômanos que teve de haver a intervenção de um dos seguranças.Ao fundo, sem ninguém notar, a Capela de Nsa. Sra. Aparecida, com seus belos vitrais coloridos e com grades...ali, tentando abençoar as multidões que passam ali desesperadamente todo dia.
Capela de Nossa Senhora Aparecida, na Central do Brasil, Rio de Janeiro. |
🖤2° experiência: o trem tipo europeu num contexto africano.
Dentro do trem da periferia, ar condicionado, horário respeitado, limpo, sistema de som interno funcionando...mas também dezenas de vendedores ambulantes , diga-se trabalhadores, berrando, alguns com até caixas de som e microfone (com muito talento inclusive pra comunicação), vendendo desde manteiga, cabos de celular, cerveja(!) e docinhos diversos...dentro do vagão e durante toda a viagem. A maioria, pretos e idosos. Mas tinha jovens também. Vi uma mãe, com um bebê a tiracolo, com o trem balançando, de um lado para o outro, vendendo sacolas plásticas e é uma prática dela tão usual, que ela se profissionalizou, usando um gancho pra se segurar...ali quase não tem turista, é locomoção de trabalho e afazeres; detalhe: na estação do metrô Pavuna, a passarela de acesso tem um verdadeiro túnel de barracos de lona azul com muito lixo , usadas para camelôs, um verdadeiro ambiente de degradação.
Solução? Camelódromo organizado? Não moro no local e nem sou político.
🖤3° experiência: Pit bunda
Na orla , muitos cães da raça pitbull e suas variações, sem enforcador e pior, sem a obrigatória focinheira (lei estadual 4597/05). Já no Parque Garota de Ipanema, uma cena chamou atenção e me causou apreensão: três pitbulls robustos totalmente soltos , como se fossem coelhinhos inocentes, e a viatura da polícia a menos de 20m. Não cabe aqui discussão filosófica sobre a periculosidade dessa raça, as estatísticas são claras. Mas, os donos que observei, são brancos e bem vestidos, já sua saúde mental, discutível.
Acesso a Estação Pavuna, do metrô carioca. |
🖤4° experiência: "canta pra subir"
Enquanto admirávamos a beleza natural do relevo da região, a flora e o mar da Pedra do Arpoador, percebi um rapaz sentado, observando a paisagem...preto, só de shorts, mas estava ali, como qualquer cidadão...de repente, aparece uma dupla de policiais militares e em poucos segundos dá tapa na cara do jovem que pede:"pára com isso, tio".Chamei a atenção do meu amigo e enquanto tentava preparar o celular pra filmar e se fosse o caso, intervir (perguntar o que houve), um dos agentes olhou pra nós e não bateu mais , porém continuou berrando , com a arma na cara do jovem: "canta pra subir, vai , canta!" , gíria que quer dizer rezar antes de morrer. Mas o rapaz se retirou e a dupla foi conversar com uma "ambulante -fixa" que vende água e refrigerante numa banca próxima...(não sei se pra se informarem ou até cobrar propina). Sabemos que ali tem muito assalto, estupros e demais delitos. A questão é o flagrante, pois não havia nenhum e a abordagem de forma ilegal. Ali preto pobre não é bem vindo, a não ser que aceite achaques pra fazer comércio, seja legal ou ilegal. Ou bem vestido no biotipo "padrão turista".
🖤5° experiência: a preta bateu na preta
Após o almoço em Copacabana, enquanto esperava o transporte de aplicativo na calçada, uma gritaria: eram funcionárias da loja Americanas batendo numa toxicômana esquálida , provavelmente usuária de crack, negra, pra sair da porta da loja; empurravam e xingavam " sai diabo, preta fedida"...mas eram também pretas...bizarrices brasileiras.
Caminhos pela floresta no Parque Catacumba |
🖤6° experiência: o trio feliz.
No Parque da Catacumba, enquanto me inebriava com a sinfonia louca dos pássaros, as cigarras cantando e os aromas das seivas das árvores da Mata Atlântica, descansando num banco, passou um trio de mulheres jovens de mãos dadas, pretas e bastante obesas , de idades praticamente parecidas. Poderiam ser irmãs ou amigas, mas a despeito de possíveis olhares dos transeuntes, a respeito da aparência fora do esteriótipo sarado e até de suas preferências sexuais , as três passeavam conversando sobre temas leves, sorrindo e relaxadas...sem preocupação do entorno. Talvez até tenham escolhido um parque ecológico para passearem mais livres, mas mesmo numa região dita de riqueza, status e de gente esbranquiçada, fiquei feliz pela tranquilidade delas.
Central do Brasil... muita história e muitas estórias |
💙Epílogo
Tais situações vivenciadas não suplantam o esplendor da beleza paisagística, a riqueza cultural e a simpatia (apesar do sofrimento) dos cariocas, mas também lembram a clássica estrofe da música da Cláudia Abreu:"cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos". O espaço geográfico talvez seja o resultado do agente humano que ali cotidianamente reflete e constrói seus atos transitórios, mas com repercussões extratemporais. O sentido tactil interferindo na construção, tal qual a Estação Pavuna do metrô: limpa, eletrônica, até confortável, mas cujo caminho do entorno, como um mini universo de exclusão, é cercada de lixo, becos e barracas improvisadas. Porém , não se deve atribuir a isso, uma noção estanque do mal e nem uma normalidade do abuso, como se fosse uma eterna e cármica contradição.
Há solução!